tudo o que é bom ao mesmo tempo
sobre herbários, cérebros que viram ao contrário e o novo livro de Santo Tomás
Eu acho que todos os políticos são nematelmintos que caíram em algum caldeirão de lixo radioativo e acabaram desenvolvendo a aparência dos seres humanos, com a formidável exceção do cérebro. A prova disso - prestem atenção, não estou brincando - a prova disso é que todo político tira foto assim:
O que é que está acontecendo aí? Obviamente estão, a seu próprio modo, indicando que lhes falta algo. E esse algo está dentro da cabeça da outra pessoa, ainda que suada e provavelmente com caspa: um cérebro. Acho que é o máximo que conseguem fazer porque estão estacionados em algum período evolutivo pouco depois da apreensão simbólica do mundo porém antes da linguagem verbal. Igual os neandertais que desenhavam javalis nas paredes das cavernas porque queriam ter javalis para caçar; ou os outros que desenhavam outros neandertais distraídos, desenhando em cavernas, enquanto eles pegavam suas esposas. O que eu estou propondo é o seguinte: ao assumir esta posição testa-com-testa eles estão indicando, de seu jeito simplório, primitivo, que gostariam de ter também uma cabeça pensante, que fosse capaz de conceber imagens das mais variadas - de um javali, até uns três ou quatro javalis, por exemplo, um diferente do outro.
A outra possibilidade, que eu não levei muito a sério, mas preciso registrar, é a de que todo político lê pensamentos, mas precisam encostar a cabeça assim na testa dos outros. E são tantas as fotos porque eles precisam saber o que os pobres sabem, como é que eles vivem, que tipo de porcaria gostam de enfiar nas suas goelas de pobre, como é que eles vivem sendo pobres, o que é uma Anitta, um iFood, etc..
Tenho a crença um tanto supersticiosa de que a morte não é uma cisão completa entre dois estados inteiramente distintos como a observação comum faz parecer. Antes, acho que a morte é como retirar um metal da forja: fica ainda um afterglow que vai progressivamente se apagando. Acho que a consciência é assim também: morremos, mas algo do nosso ouvido não morre (afinal, tantos anos de uso, old habits die hard). Imagino também a angustiante sensação de perceber o seu olho se abrindo para uma realidade luminosa muito melhor do que a nossa, onde só tem católicos e uns três protestantes bons, enquanto seu ouvido ainda tá aqui plugado no corpinho merreca que ficou no hospital. Você vê que não precisa mais de pés para andar, porque o *fluf-fluf-fluf* de asas invisíveis te levam pra lá e pra cá. Mas aí você recebe as notícias da sua orelha, que está lá embaixo, no mundo dos que precisam mastigar comida, como um sinal interceptado de rádio pirata:
— Olha, parece que tá descansando - você escuta sua irmã falando - Tá descansando, vó, parece que tá descansando, né?
Um sujeito incandescente chega até você com um cajado na mão, um coral de querubins nascendo a cada passo que ele dá nas nuvens. Você sente finalmente que *ufa, a prova acabou, agora é só aproveitar a contemplação infinita do amor de Deus*.
—Vó, chama lá a Cida, o Ricardinho morreu e tá vazando um negócio aqui da orelha.
Você olha pro lado e Santo Tomás de Aquino está terminando um tratado com 45 volumes sobre Teologia que faz a Suma parecer insignificante como um cupom fiscal de farmácia. Ele te pergunta se você quer dar uma olhada. Um trem voador aparece na velocidade da luz, o maquinista é Santo Antão, e ele te pergunta se você quer experimentar tudo o que é bom ao mesmo tempo.
—Ricardinho tava magro, né? Você viu a enfermeira piranha olhando pro tio Zeca? Vagabunda puta arrombada.
Nesse fim de ano, se alguém pedir pra você subir numa assadeira e morder uma maçã, NÃO FAÇA!
Lendo sobre herbários medievais, uma autora salienta o fato de que os primeiros que foram produzidos em terras britânicas continham já quase 400 ou 500 nomes de plantas, enquanto aqueles deixados pelos gregos na europa continental tinham aproximadamente 150 nomes. Ela comenta placidamente que isso já demonstra uma espécie de superioridade herdada que os ingleses têm quando o assunto são os jardins.
Tenho uma fixação absurda por jardins, embora nunca tenha cuidado de um. Se você observar um timelapse (uma vantagem que temos em relação aos camponeses medievais, afinal), se observar um timelapse de uma boa e velha floresta europeia não vai conseguir discernir muito claramente as diferenças fundamentais entre as estações. Claro, vai saber que duas são estações quentes, uma é avermelhada, e outra é toda branca. Mas não vai perceber claramente o primeiro movimento de erupção da primavera, a fixação de sua exuberância, a multiplicação das folhas, a intensidade do sol que torna o verde queimado em meados do verão. Porque na floresta os diversos elementos que compõem o quadro cósmico estão espalhados desordenadamente, e não condensados, depurados, afunilados em uma experiência estética total. No jardim, entretanto, dá pra ver tudo isso sim. Dá pra ver todos os signos do zodíaco se alternando com a precisão de um ônibus alemão, explicando-se para nós, que tanto teimamos em ouvir.
O zodíaco, tomado exteriormente, por assim dizer, representa a multiplicidade máxima da existência sublunar, um estado de diferenciação dos fenômenos que em muito ultrapassa, por exemplo, aquele do quaternário ou do setenário. Nesse aspecto, ele é a discursividade de um mundo em queda que morre e se renova ciclicamente. No entanto, desde o seu interior, em sua coesão estrutural, ele também diz algo da unidade das coisas na medida em que todos os raios partem de um único vértice imóvel que está no centro.
Num mundo onde todo mundo tem o attention span de um lêmure excitado, as doze etapas que o sol perpassa no zodíaco não são suficientes para sanar a sede de diferenciações que o nosso cérebro deseja. Daí pensei em outra coisa: que talvez o zodíaco pudesse se abrir mais, como num caleidoscópio infinito ou num jogo de bonecas russas, para oferecer ainda mais da pujança de Deus por meio da iteração segundo os diversos períodos do dia (que são sete, ou oito, dependendo das suas fontes; e que coincidem com os períodos de oração monástica ou, para os leigos, da Liturgia das Horas). Assim, dá pra refazer o ciclo total anual do zodíaco todos os dias, capturado na imagem da morte e renascimento a que somos submetidos na cama.
Mas nem o olho mais treinado artisticamente poderia interpretar os augúrios da luz do sol quando nasce, ou das faíscas crepusculares que perduram no céu durante o gloaming. Daí que me veio a idéia de um sistema de divinação zodiacal que interprete a sombra de um jardim durante o dia, e de velhinhos ingleses dóceis que mantém os seus jardins não pela exuberância das cores, mas pela facilidade com que suas sombras se dão à leitura. Cultivar a sombra ao invés da planta; ler as projeções achatadas, projetadas na grama do que vai acontecer amanhã ou depois.
A idéia não me parece de todo fantasiosa - os astrólogos de antigamente liam o céu por meio de bacias de água ou espelhos simplesmente porque se debruçar sobre algo é muito mais fácil do que ficar olhando pra cima, completamente vulnerável a alguém que queira enfiar o dedo no seu nariz, por exemplo.
Um deus ex machina para o Brasil: no meio da Amazônia descobrem que esta realidade é uma simulação rodando num bichinho virtual que usa como fonte de energia um hamster correndo numa bolinha. Alguém aperta o botão off. Acordamos todos nus em pods futuristas cheios de gosma transparente com um cabo HDMI enfiado no nosso cu. Um careca de óculos escuros entra na sala.
— Então foi tudo um sonho?, perguntamos.
— Foi tudo um sonho, ele responde.
— Até o Sérgio Malandro?
— Até o Sérgio Malandro.
Depois descobrimos que o mundo verdadeiro tem o formato de uma galinha caipira e que a gravidade é só um monte de fio transparente puxando a gente pra baixo.
Dois manuscritos importantes para o herbalismo anglo-saxão foram compilados no século X - o Leech Book of Bald e o Lacnunga - e oferecem uma visão bem vívida das coisas que capturavam a imaginação dessa gente ancestral que pariu Chaucer, Shakespeare e o Mr. Bean, os três gênios dos últimos dois milênios. A sua importância deriva do fato de que são exemplos de livros que continuam alguma tradição folclórico-médica antiga, talvez nascida dos vapores pantanosos da Irlanda ou da névoa brilhante da Escócia, sem apresentar sinais de contaminação da medicina greco-romana que depois dominou por muitos séculos a literatura médica continental. Na verdade a cosmologia aristotélica parece ser um tanto refinada perto do que a farmacopeia folk britânica parece tomar por óbvio: não, as doenças não são causadas por desequilíbrio de humores, e o mundo não é um sisteminha fechado e organizado de esferas planetárias que destilam as suas influências cíclicas no mundo sublunar. As doenças são causadas por elfos, éguas negras (nightmare), goblins, seres que borbulham na escuridão de todo terreno não domesticado, paridos sucessivamente do ventre hiperfecundo das cavernas. Essas criaturas em geral desdenham das regras da civilização dos humanos, seja porque vivem numa anarquia bestial ou porque obedecem a um outro rei, mais invisível que o nosso, e podem colocar em risco a vida das crianças e da ordem da comunidade. (Abrindo um parêntese, pelo que o Yeats relata aqui, este folclore ainda estava vivíssimo na Irlanda campestre até ao menos o final do séx. XIX, com todo panteão de criaturas brilhantes, rainhas das fadas e aparições assombrosas).
Os herbários da época são na verdade compilados de superstições, esconjuros e medicina natural ou herbalista, tudo misturado em um panelão onde não se vê exatamente o que é cristão e o que é pagão. Muitas doenças são causadas pelo toque do cajado de elfos invisíveis ou por suas flechas - daí o nome elf-shot para os homens ou animais que padecem dessas enfermidades. (Pensar em elfos e suas aljavas brilhantes talvez seja inaceitável para a mentalidade médica moderna, mas junto com a teoria dos elf-shots vinha também a noção de doenças causadas pelo flying venom, o que se assemelha à noção moderna das viroses transmitidas pelo ar). Algumas receitas são puramente práticas e esvaziadas de algum sentido oculto, cuidadosamente preparadas para os problemas que mais afligiam os camponeses - tipo tratamentos para um crânio partido, uma quantidade excessiva de tratamentos para mordida de cães raivosos, ou simplesmente a queda de cabelos (os ungüentos estéticos eram populares, apesar dos pregadores advertirem contra a vaidade).
Alguns outros são indissociáveis do que o brasileiro hoje conhece por macumba - sufumigações com ervas coletadas em dado momento astrológico, confecção de amuletos com certas pedras e flores, o entoamento de rimas arcaicas das quais não se pode extrair qualquer significado, superstições acerca de como coletar tal planta, dar três pulinhos, virar uma cambalhota pensando numa vaca azul, &c. Tudo isso misturando com algumas instruções religiosíssimas tipo deixar um remédio debaixo do altar durante sete missas, ou fazer uma rotina de orações da Igreja em latim antes de administrar certos remédios.
Para tratar um sujeito que tem pesadelos, os livros indicam colocar a pele do filhote de um cervo em seus ombros e adorná-la com montículos de ervas. Para os lunáticos, deve-se confeccionar uma guirlanda com cravos e fita vermelha para usarem no pescoço quando a lua estiver minguando. Um velho com cataratas deve olhar para um corpo de água gelada para restaurar a saúde dos olhos; para ajudar ainda mais, devem pentear os cabelos antes das refeições. Uma das instruções do Leech Book of Bald propõe-se a ajudar o homem que já não aguenta mais ouvir a falação da esposa: depois de um dia de jejum deve comer um rabanete cru. Segundo o autor, that day the chatter cannot harm thee.
Pra proteger a sua casa da tentação do demônio, deve-se pendurar um tipo de salsão vermelho molhado sobre a porta; para preservar os seus porcos da morte súbita deve-se pendurar nos quatro cantos do celeiro as seguintes ervas e flores: tremoceiro, betônica, grama seca, alguma coisa chamada tufty thorn e viperina.
Todos os nomes de plantas em inglês saem da boca como poesia: bishopwort, vipers bugloss, Christ’s eye, bulbiferous toothwort, blue devil’s bit scabious, dog’s-mercury, dwarf elder, loosestrife, monk’s rhubarb, saracen’s consound. E, claro, não poderia me esquecer da Arssmart. Tentar traduzir todos esses nomes sem perder a sprezzatura é um passatempo gratificante.
Certas plantas, aliás, são as preferidas para serem carregadas como amuletos: a betônia, a verbena, a peônia, o milefólio e a artemísia-comum - com a complicação de que a verbena deveria ser colhida assim que a dog-star (Sirius) aparecesse no céu.
Pouco a pouco, parece, os herbários começaram a ficar mais comportados. Por algum motivo o europeu decidiu ficar longe das maldições, da invocação de espíritos malignos e da magia simpatética telúrica. O resultado a gente vê aí: uns dentes horrendos, uma família real [c e n s u r a d o] e um primeiro ministro que parece uma vassoura estripada. Ainda no Complete Herbal do Culpeper (que pode ser acessado de graça aqui, mas tem uma edição lindíssima aqui), algumas superstições são mencionadas e desdenhadas pelo astrólogo (por exemplo, se não estou enganado, ele diz que andar com uma hound’s-tongue na bota não serve para nos proteger contra cães raivosos - e eu levando a minha esse tempo todo!). Eu não sei não, mas se o povo se manteve vivo em um mundo em que virando a esquina você encontrava um viking alucinado, um porco possuído pelo diabo ou um cidadão cujo cérebro foi virado do avesso por uma bruxa, eu confiaria no que eles têm a dizer sobre medicina.
Queria ter dinheiro sobrando pra fazer um museu sensorial para explicar simbolismo astrológico de modo prático e tangível. Sim, sim, dá pra aprender lendo notinhas e livrinhos, mas isso é uma operação intelectual. O intelecto, como os pássaros, não deixa rastros; e a aprendizagem é um jogo de caça em que você tem que ficar retraçando seus próprios caminhos pra entender onde foi que se perdeu. Diante de um desconhecido o nosso primeiro movimento é tocá-lo com as mãos, depois, só depois, perguntar o seu nome. Antes de saber quem ele é, sabemos que ele é, porque uma encarnação só pode verdadeiramente reverberar em outra carne. Por isso eu acho que precisamos sugar o simbolismo como por um canudinho, deixá-lo derreter na boca, comparar um com o outro pra saber qual é o melhor.
Entrar na sala de Vênus, por exemplo, e encarar trinta mulheres nuas, um banquete cheio de doces, inclusive com combinações: vênus em touro (um apfelstrudel com nozes), vênus em áries (uma cheesecake com geleia de pimenta), vênus em escorpião (um monte de estrume perfumado). Na sala de Marte, entrar numa briga de faca contra um gaúcho orgulhoso, vestir a armadura de um cavaleiro medieval, fazer um concurso de comer pimenta, colocar um capacete e dar cabeçada em carneiros raivosos.
No final, depois de um mês submerso nos planetas, comendo os planetas, dormindo com os planetas, levar todo mundo para o quintal e fazer libações com bacias de vinho (os espelhos que existiam antes dos espelhos), e em cada taça enquadrar o reflexo brilhoso de Mercúrio no céu, porque ele dará o tempero dos nossos goles.
Links da semana:
Uma coleção de homílias do século X escritas por Ælfrīc, aluno de Æthelwold.
Um blog repleto de belas imagens e pedaços interessantes da história da Irlanda profunda.
Repositório com bestiários medievais.
O canal de um hippie cool que manja de herbalismo antigo e moderno.