Falei de passagem sobre o ritmo do sol na última newsletter que eu transcrevi enquanto os grilos ditavam para mim em código morse. O movimento pendular que eu mencionei também pode ser abordado sob o ponto de vista do simbolismo numérico. O símbolo alquímico ou astrológico do sol é um círculo fechado, imagem do que é completo em si mesmo. Ele é o oposto complementar da lua, cujo símbolo é o semicírculo, ou um círculo aberto. O sol é um centro irradiante (por isso o ponto no centro), a lua é um receptáculo que absorve e contém essa força irradiada. Não é difícil relacionar os dois com outro par simbólico fundamental: o homem e a mulher. O homem lança a sua semente (como o sol lança a sua luz) e a mulher a captura, tornando-se insuflada (como a lua cheia) e depois retorna ao seu estado anterior (lua nova). O homem tem barba como raios; a mulher se enche e se esvazia ciclicamente.
O sol também é o símbolo da unidade e da completude, enquanto a lua é símbolo da multiplicidade ou da fluidez, das transformações. Ao identificar os dois pontos mais extremos do movimento do sol (os solstícios de verão e inverno, que também delineiam os trópicos de capricórnio e câncer), o que ocorre é um desdobramento discursivo das potencialidades que existiam no sol tomado outrora como unidade. Os dois extremos são também complementares: o inverno é frio e úmido, monocromático, petrificado; o verão é quente e seco, colorido, cheio de vida. É o um tornando-se dois, ecoando a tensão simbólica fundamental que está presente também nos pares macho-fêmea (no caso, o inverno é o período em que a noite “vence” o dia, e no verão ocorre o contrário. O inverno então é o sol “derrotado” pela lua; e o verão é o sol vencedor - por isso o signo fixo do verão é Leão, o domicílio solar).
A dualidade então se desdobra na tríade quando traçamos a linha solsticial e percebemos que ela tem um centro, que é o equinócio. O equinócio é o que torna os dois extremos equidistantes, o equilibrista que segura uma vara para não cair. A tríade também é o triângulo que os signos de mesma natureza elemental estabelecem entre si (triplicidades), bem como a temporalidade (passado - presente - futuro). Por fim, como o sol passa duas vezes pelo equinócio em seu ciclo anual (uma depois do inverno e outra depois do verão), a tríade se torna o quaternário, que é o símbolo por excelência do mundo manifestado e da espacialidade: afinal, a terra é dividida em quatro direções, as casas são construídas com quatro paredes, o ano tem quatro estações, os homens têm quatro temperamentos e tudo o que existe é feito de quatro elementos. As quatro estações também têm o correspondente espiritual nos quatro evangelistas e os seus símbolos, cada um localizado em um ângulo zodiacal:
Geometricamente, este movimento que começa do um e termina no quatro é representado pela pirâmide, que tem uma ponta que se expande em uma base quadrangular. Outra coisa interessante de notar é que o Coluro Equinocial (o círculo imaginário que conecta os dois equinócios) perpassa o signo de Áries (primavera) e o signo de Libra (outono). Em Áries o mundo está começando e em Libra ele está começando a morrer, o que corresponde aos mistérios da Anunciação e da Flagelação (quando a justiça dos homens decide que Deus precisa morrer). Áries também se associa ao temor de Deus, que é o começo da sabedoria; e Libra se relaciona com a justiça divina. No zodíaco, os dois signos ficam se contemplando como em um processo de retroalimentação.
A trajetória pendular do sol também sugere um ritmo, um movimento cíclico que se repete indefinidamente. Isso é bem visível quando contemplamos os vídeos de timelapse das estações em que podemos ver os efeitos da música solar: a natureza se expande e se retrai como os pulmões de um monstro que mergulha na escuridão cósmica e depois emerge. O sol que vai pra lá e pra cá também evoca a imagem do fazendeiro zeloso que está delineando os limites de suas terras, observando cada canto para que nenhum fique sem o seu calor vivificante (pensem também na felicidade das crianças quando o pai volta para casa). O movimento também lembra o tic-tac dos pêndulos em relógios antigos, que são ótimas representações microcósmicas das operações solares que são o fundamento mesmo de qualquer temporalidade.
Uma imagem bela, também, é a do relógio de bolso do hipnólogo, que desempenha a mesma função rítmica-pendular quando usado para introduzir alguém ao transe. Aliás, quase qualquer movimento ritmado serve para fazer os bebês dormirem, e a música sempre foi usada em contextos rituais para propiciar certos estados anímicos, desde o êxtase do místico até a fúria dos guerreiros. O sol, portanto, o metrônomo cósmico por excelência, poderia ser encarado como o artifício de um hipnólogo invisível que nos quer a todos permanentemente encantados, enfeitiçados a olhar constantemente para cima, para a mão terrível que o balança.
Penso também na formulação do Bronze Age Pervert, que diz que “animals walk around in a state of permanent religious intoxication. This is the natural condition of the mind and intellect”. Existir dentro do ciclo de transformações lunissolares é estar intoxicado, bêbado, é ter ganchos que puxam a nossa alma para todos os cantos, vozes incorpóreas que nos sopram sugestões a todo momento. Na cosmovisão medieval os ciclos solares e lunares criavam ressonância nas vidas humanas em menor escala: as quatro estações são as quatro idades do homem, o pêndulo solar é o coração que toca o tambor involuntário da sístole-diástole. A centralidade do sol na vida humana (que, na liturgia, é símbolo da Encarnação) evidencia-se também na literatura médica, que considerava o sol (e seu domicílio zodiacal, Leão) o regente do coração - o órgão mais nobre do corpo, onde Cristo pode habitar.
Chamo atenção para esta inscrição, ou graffiti, medieval numa igreja irlandesa, que é como uma síntese de tudo isso que andei falando:
À direita, vemos as 5 sagradas chagas de Cristo tendo como eixo central o coração transverberado (assim como, ao fazer o sinal da cruz, o cristão cria um quaternário que tem como eixo de intersecção o próprio coração). À esquerda, a Cruz com a coroa de espinhos: os doze espinhos se projetam para fora como raios solares, a sobreposição do círculo com o quadrado (Cruz) indica a universalidade, a conjunção entre o Criador e a criação (é, aliás, o símbolo astrológico da terra). O centro da Cruz (que corresponderia ao coração) está dilapidado - talvez por ter perdido parte de alguma escultura que ficasse ali, talvez por pura coincidência.
Para um camponês (medieval ou atual) o movimento do sol e as fases da lua têm uma importância bastante evidente e imediata na vida prática e cotidiana. Nas cidades, nem tanto. Este não é um problema recente - mesmo nas cidades medievais as pessoas já estavam perdendo o contato com a noção dos ciclos naturais (ainda que em uma dimensão infinitesimal se compararmos com o presente) e estavam paulatinamente criando outros ciclos para substituí-los. Por vezes os ciclos se sobrepunham uns aos outros, criando monstrengos calendarísticos horrendos. Mas no geral cada cidade procurou estabelecer ciclos, celebrações e sistemas de ordenação do tempo que fizessem sentido para eles. Para dar um exemplo prático, o camponês sempre vai celebrar os momentos importantes do sol - a mudança das estações, o tempo da colheita, o tempo do descanso, etc. Isso nunca vai mudar. Mas em uma cidade cuja economia era movimentada pela produção e comércio de lãs, o calendário das ovelhas era obviamente mais importante do que o calendário dos frutos e dos grãos. Cada vocação ou “carisma” econômico criava um universo temporal diferente, de maneira que, por exemplo, cada guilda tinha as suas regras quanto as horas diárias trabalhadas, dias de trabalho, feriados e celebrações.
Neste caos aparente tornou-se cada vez mais importante demarcar o tempo de maneira minuciosa. Um detalhe importantíssimo, e que faz um sentido simbólico enorme, é o de que as horas não tinham uma duração igual todos os dias. Até mais ou menos o séx. XIV a contagem das horas era modulada pela estação do sol e portanto pela duração dos dias. Você pegava o período de luz solar e dividia em doze partes - uma parte dessas doze era “uma hora”. Todos os dias sempre tinham doze horas, mas uma hora no inverno era brutalmente menor do que uma hora no verão, porque no inverno as noites eram muito mais longas. Então o tempo se dilatava, tornava-se elástico. Quando o sol estava forte, alto no horizonte, as horas eram mais longas e você podia trabalhar mais. Quando o sol estava fraco, escondido, o tempo passava rápido e você só conseguia pensar em como a nossa vida se esvai. A dilatação e retração do tempo sugere algo da noção astrológica tradicional de que o tempo é qualificado. Ele não tem o seu lastro no reino imutável da matemática perfeita - é uma criatura que também cresce e diminui, respira, fica forte ou fraco. Assim como todo o resto da criação, o tempo também é um bafejo de Deus.
Demonstro abaixo um jeito bastante engenhoso que os medievais arrumaram de sintetizar a quantidade de horas de luz em cada época do ano, em cada estação do sol (ou em cada signo do zodíaco):
Com a urbanização da sociedade, parte dessa noção foi perdida. As pessoas leigas passaram a regular e ordenar suas vidas do mesmo modo que os monges faziam em seus claustros: com sinos. Fiquem atentos porque a próxima lero-lero será sobre isto.