#07 - onde Cristo deitou a cabeça
sobre a voz da Cruz, morar dentro de uma árvore, e o Ronaldinho Gaúcho
Tem um poema anglo-saxão escrito provavelmente antes do século X que põe a Cruz do Nosso Senhor para narrar a própria história. Ela nos conta, com imagens poeticamente avassaladoras, toda a sua trajetória desde quando era uma árvore até o seu imenso destino. Tudo não passa de um sonho, claro, e o autor do poema se apresenta assim:
Listen! Let me tell you about the best of dreams,
What I dreamed about at around midnight,
After the bearers of voices took their rest.
Eu suponho que o bearers of voices esteja se referindo aos homens, mas na primeira leitura confesso que me fiz a importante pergunta: será que o autor também está incluindo aí os papagaios?
A observação celeste revela que os planetas têm personalidades distintas - uns são erráticos, malucos, escorregam pra cá e pra lá no grande firmamento como peixes num aquário; outros são lentos, impassíveis, frios como as verrugas das bruxas. O tempo que demoram para completar uma revolução no zodíaco também é diferente - mercúrio, por exemplo, faz a sua revolução em 88 dias, enquanto Saturno faz em 29 anos. Os alquimistas milenares, os djinns longevos e os pokemonzinhos de satanás devem fazer as suas apostas na corrida imortal dos astros como quem acompanha uma corrida de cães. Em algum guichê escuro no meio de Macau, num beco iluminado por letreiros neon, se reúnem as figuras abissais como numa peregrinação intergalática. Uma porta secreta se abre, lá embaixo um speakeasy esotérico serve moonshine feito com as róseas penas do Anjo Gabriel, aperitivos temperados com o odor de flores da tumba de santos incorruptos. Numa mesa no canto André Barbault e Paracelso observam o Jorge Ben fazendo embaixadinhas. A partida acaba em duzentos anos e o ganhador vai levar a terceira parte do doce e terrível segredo.
Segundo o Talmude, o sono é 1/60 da morte. O bafo matinal faz lembrar a fermentação do vinho (que acontecia, na idade média, quando o Sol entrava em Escorpião - o signo do apodrecimento úmido, o fedor da decomposição). Deve ser uma merda ser o sujeito para quem os 1/60 foram calculados erroneamente para, sei lá, 40/60. (Talvez, no ato de sua concepção, o pai tenha sofrido um ataque cardíaco alguns momentos antes de fecundar a moça, de maneira que ela tenha ficado grávida efetivamente de um zumbi. Sabemos que nesta hora os vapores e humores do corpo precisam estar cuidadosamente bem dispostos, como nos lembra Sterne - “I WISH either my father or my mother, or Indeed both of them, as they were in duty both equally bound to it, had minded what they were about when they begot me”).
Agora o sujeito tem de dormir e chegar bem, bem perto da morte, quase sentir a brisa sulfúrica que sofra do Tártaro. Os sonhos são bem mais lúcidos, porque envolvem pessoas reais, e não apenas agregados plásticos moídos de excedentes hormonais, respingos do encanamento das paixões. Ele realmente vai para onde está o seu tio-avô que passou três milênios com as solas dos pés em carne viva, caminhando em círculos ao redor do Monte Sinai, no purgatório. E quando acorda o corpo já está gelado, os olhos amolecidos quase vazando, a pele demarcada pelo exuberante coral de decomposição que toma conta dos mortos: o roxo que se transforma em um verde pardacento, o amarelo e o rosa e o cinza. E na sua boca não tem bafo porque não tem nada ou quase nada: o seu espírito virou um fiozinho de ar que sai pra fora imperceptivelmente como num pneu furado. E tem que explicar para a sua mulher por que seu fígado está escorrendo pelo imbigo.
No céu existem diversos túneis que se abrem sob os pés dos anjinhos, formando uma complexa rede de tubulação sagrada que desemboca em cada igrejinha ou lugar que tenha alguma densidade espiritual. Um túnel derrama Espírito na Notre Dame, ainda que cheia das breguices; um outro, mais largo, derrama pétalas celestiais numa casinha no interior da Hungria, onde um santo viveu. Os anjos colocam as mãozinhas nas bordas, esticam os pescoços pra ver alguma coisa (a careca de um padre que celebra a Missa, uma criança rezando para o Palmeiras ser campeão), jogam pedrinhas pra saber até onde que vai. A pedrinha cai e se torna uma inspiração na alma de algum escritor.
As paredes enormes das catedrais medievais são como carcaças de grandes monstros sagrados. As pedras pálidas sabem que vão perdurar por muito mais tempo do que a geleiazinha dentro do crânio dos monges. Os amplos espaços vazios das abadias cistercienses sugerem o silêncio de um palácio que espera o retorno do seu Rei - um palácio onde todo mundo é apenas convidado, séquitos do invisível. A monumental arquitetura cisterciense parece querer fixar a sensação de ausência - às vezes uma ausência otimista, suave, gestando a mesma expectativa da grama do Éden momentos antes de ser informada dos passos do Criador; às vezes uma ausência completamente desmoralizante, como a que pesou sobre os Apóstolos voltando do sepulcro, tendo deixado Criador do universo sozinho numa tumba gelada como quem não tem amigos.
Algumas construções mais antigas ou rudimentares, pelo contrário, passam a impressão de que para algumas pessoas não existia cisão entre espaço doméstico e espaço sagrado - as igrejinhas celtas de pedra, no cume de montanhas ou em ilhas inabitadas, são a um só tempo as antigas casas de santos, igrejas locais, alvos de peregrinações regionais, e de brinde às vezes trazem monumentos monolíticos dos pagãos anteriores. Esta pequena ruína sagrada, na costa de Pembrokeshire, local de nascimento do São Davi de Menévia, é rodeada por standing stones druidas que os cristãos não quiseram derrubar. Em uma delas dá pra ver as marcas miraculosas dos dedos da santa Nona, que se revirava em dores de parto.
Entre os dois extremos - a igreja-doméstica que é a manjedoura ou a catacumba invisível versus a igreja-templo que é o leviatã ou a grande barca da salvação - existe um meio-termo que são as igrejas de madeira nos pequenos vilarejos. As pedras sugerem ossos e dentes de titãs devastados. A madeira, ainda que serrada e já morta, informa algo da vida que já teve um dia.
Uma igreja com madeira dá a impressão de que a Cruz, a nossa árvore da salvação, está permanentemente lançando as suas raízes cada vez mais longe, retorcendo-se no coração da terra como um punho fechado. Como se a igreja estivesse sendo devorada pelo amor destrutivo de Deus, contaminada pela Sua radioatividade, consumida como por um câncer luminoso que se espalha pelas paredes e pelos bancos e nos abraça. E nos ajoelhamos dentro da Cruz, fazendo dela uma casa, como os coelhinhos em contos de fada que moram num tronco de árvore. A igreja como árvore-cruz também faz sentido se tomarmos por pressuposto o fato de que o templo precisa condensar o cosmos. Além dos jeitos tradicionais conhecidos de fazer isto - colocando uma abóbada arredondada e repleta de estrelas, inserindo zodíacos e demarcando os quatro pontos cardeais -, existe um que é mais stylish e pungente. Voltamos aos cistercienses:
Os cistercienses construíam suas igrejas e mosteiros seguindo os princípios tradicionais com alguns acréscimos interessantes. Todas direcionam os altares para o Leste (este detalhe é importante e vou falar o motivo adiante) e as igrejas têm o formato da Cruz - complementando a idéia de que o templo não apenas é informado pelo cosmo, mas também pelo homem que é imagem do cosmo (e imagem de Deus). A Cruz então é o eixo ordenador ao redor do qual gravitam essas realidades todas - Deus, homem, natureza, o começo e o fim de todas as coisas.
Os claustros são colocados abaixo de um dos braços da Cruz, evocando a imagem dos monges que se deitam no seio de Cristo; mas também do Cristo de braços abertos, abraçando o mundo inteiro, no momento mesmo em que o mundo O repudiava. Outro detalhe interessante é que os mosteiros são estruturados com a consciência perene de que a Graça irradia. Os aposentos menos espirituais (tipo o refeitório) estava mais afastados da Cruz, enquanto os aposentos mais espirituais (tipo a biblioteca) estavam mais próximos:
Evidentemente o local mais sagrado é o altar, onde se localiza a cabeça de Cristo (que, junto com a imagem da Igreja como barca, nos lembra do episódio em que o Nosso Senhor dormiu no barco com os apóstolos). O altar está direcionado para o Leste porque ali é onde nasce o sol, representando a vinda de Cristo. Em algumas igrejas, especialmente na Grã-Bretanha, a estrutura da parede Leste é feita de tal modo a permitir o enquadramento do sol como dispositivo arquitetônico em datas especiais, encaixando-o em algum vitral ou outro espaço especialmente importante. Para os cistercienses, que evitavam ao máximo utilizar cores e imagens em suas igrejas, a luz era especialmente importante - aliás, a luz era o tema central das igrejas onde não haviam vitrais coloridos, cenas da Paixão, esculturas sagradas ou mosaicos elaborados. Era só pedra, sombra e luz - os minimalistas do medievo. Então o posicionalmento do Sol, a sua viagem diária pela abóbada, a captação de sua luz e calor pelas janelas e aberturas, isso era o principal mecanismo de contemplação dos monges. Daí a importância em construir igrejas alinhadas com os momentos astronômicos interessantes (que vai ser o tema da próxima news-lero pois esta já está muito grande).
Aquilo que dá a coesão fundacional do nosso eu, que é a memória, também trabalha constantemente como um estagiário no primeiro dia de serviço, selecionando eventos irrelevantes ou até francamente constrangedores para cravar no nosso palácio interior, preterindo outros mais importantes (tipo a coletânea da poesia completa do John Donne).
Penso que poderíamos ter algum mecanismo biológico que nos avisasse quando é que estamos formando memórias eternas, essas que carregaremos até o leito de morte. O problema é que a gente sentiria o sinal - um estremecimento, sei lá - e imediatamente ficaríamos com stage-fright, sendo que o público somos nós mesmos. Onde já se viu, testemunhar a própria existência assim, descaradamente, sem vergonha na cara? Daí a gente ficaria nervoso igual um gaguinho nervoso e faria alguma coisa estúpida tipo derrubar o macarrão no chão ou colocar sal no café.
Num livro sobre a confecção de amuletos na cristandade medieval o autor faz a seguinte observação:
During the Middle Ages, there was a theological basis for people to recall sacred text from memory and write it down for amuletic use or recite it like a charm or blessing. A combination of biblical authority, Christian theology, and popular tradition supported the belief that sacred words rightly dwelled in the human heart (the seat of reason, memory, conscience, and emotion). In the human heart, Christ or an internal scribe could copy sacred words onto the parchment leaves of a book of memory.
Na modernidade é comum ver uma analogia popular entre o cérebro e os computadores - desde gurus da produtividade dizendo que precisamos ter um segundo cérebro em algum app de anotações até as especulações de nerds com muita liamba na cabeça dizendo que no futuro nossa personalidade será um arquivo downloadable. Afinal, o cérebro é o lugar do computus (que, na idade média, era tão somente o cálculo da data da páscoa - isso aí, ateuzinho, você está escrevendo num computador porque os monges queriam louvar a Jesus Cristo na hora certa), então faz sentido, para quem vê o ser humano como uma roupa de carne habitada por um espírito inteligente, que as operações intelectuais se situem no cérebro. Ora, a cosmovisão medieval, que não tinha liamba na cachola, percebia o contrário: o centro das operações mais nobres do ser humano é o coração, e dentro dele não tem uma máquina repleta de engrenagens fazendo *bip bip bop bop*, mas um internal scribe, um mongezinho homúnculo que fica depositando papiros na nossa alma como quem alimenta um golem de barro. Pequeno como aqueles que moram dentro das letras.
Eu imagino a ABIN como dois caras numa van com várias televisõezinhas de tubo passando simultaneamente três videos de melhores dibres do Ronaldinho Gaúcho e umas duas câmeras escondidas no quarto da Marcela Temer. Daí dispara algum apito de vez em quando, o Agente Nogueira chama o Agente Peçanha, e os dois ficam olhando pra gravação de uma câmera de segurança da rodoviária no Acre.
— Ó, alá, o traficante com a bolsa cheia de arma, alá - diz o Agente Nogueira.
— É memo, alá - responde o Agente Peçanha.
— Óia só! Os cara inventa cada uma, alá.
— É memo.
— O traficante, alá.
E depois voltam a ver os melhores dibres do Ronaldinho Gaúcho.
Links da semana:
Um bom livro sobre a arquitetura cisterciense.
Uma aula muito boa sobre como ler contos de fadas.
Livrinho interessante sobre simbolismo nas igrejas.
Que coisa boa ter te encontrado Salisburgensis