Sempre aparece na minha timeline vídeo de italiano puto porque alguém pediu ketchup na pizzaria ou quebrou o spaghetti antes de jogá-lo na água fervente. A impressão que dá é a de um povo que já perdeu quase, quase tudo, mas tenta se agarrar a um pequeno fiapo de dignidade que lhes resta (mais ou menos como os brancos pobres e racistas que falam “pelo menos eu não sou preto!” enquanto tomam suco tang de uma garrafa pet). É foda manter a própria dignidade pensando que seus antepassados saíram de Roma para morar na Mooca. Colocar ketchup na pizza é dizer para o pizzaiolo que o que ele fez não está bom; aliás, está tão ruim que você não veria problema em disfarçar este gosto horrível com um molho ultraprocessado. Imagina que você entra no Louvre com seu amigo e ele acha tudo uma merda. Na frente da Monalisa, ele está completamente entediado. Daí ele tira do bolso um recorte de revista com dois peitões desgraçadamente grandes, estende a mão e alinha com o quadro. “A Monalisa peituda, alá”, ele aponta satisfeito. E ele sai do museu falando que gostou um pouco até. Para um italiano você é esse cara.
Uma sala de aula medieval, todas as crianças debruçadas sobre os seus cadernos (livros de três metros de altura encapados com o couro de algum chupa-cabra), os meninos escrevendo com suas penas de pomba, as meninas escrevendo com suas penas de pavão, floreando tudo, pensando “vou deixar esse ‘T’ bem bonitinho”. Assim nasceram as iluminuras.
Quero escrever um filme de velho-oeste onde o protagonista é a única pessoa da cidade que tem a noção suprahistórica, completamente META, de que ele está no velho-oeste. Alguém dá uma escarrada preta num baldinho que faz *PLIMmmm* e ele diz “hehe, velho-oeste”. Outra pessoa entra um saloon e as portinhola fica balançando uma contra a outra e ele diz, baixinho “sempre tem essas porta, né, no velho-oeste”. A sua mulher chega com o cadáver do seu filho que morreu num tiroteio contra um criminoso queixudo chamado William Outlaw e ele diz “foda, velho-oeste é foda”. No final ele é internado numa looney bin e ele cai numa espiral de tormento e loucura porque foi retirado do filme de velho-oeste e colocado num filme, sei lá, do Coringa.
Um antídoto para a arrogância (tipo de musgo que acumula na alma depois de ler muito) é o ímpeto de colecionar o maior número possível de experiências clichês. Chorar no nascimento de um filho, se apaixonar por uma doidinha, ficar bêbado e abraçar um amigo. A literatura, nay, a cultura ocidental inteira é uma nota de rodapé para o fato de que seres humanos sentem as mesmas coisas universalmente. Mas por algum motivo os literatos querem crer que o sentimento deles é nuançado, tem matizes, tem complexidades internas. Ora, complexidade interna é um atributo dos intestinos e dos formigueiros. Quero sentir o clichê, banhar-me no clichê, virar um clichê ambulante. Quando alguém me perguntar o que eu quero da vida, quero responder “o que eu quero ainda não tem nome…”
Sempre fico vendo vídeos de pentecostais falando em línguas durante horas tentando captar alguma fluência no mumble-jumble. O meu sonho é escrever um filme inteiramente falado nessa quasilíngua que vai chamar ‘Labaxúrias’. No final, o crente não poderia dizer que não entendeu nada, sob a pena de ser taxado de inespiritual, então teria que projetar uma mensagem qualquer ali. Uma mensagem linda, suave como Cristo. E eu ganharia o Oscar porque ninguém seria capaz de falar mal de um filme suave como Cristo.
Doktor Paglia, o maior detetive que a Grã-Bretanha medieval já conheceu
A notícia de que o Alexandre Soares Silva vai tirar umas pequenas férias da Newsletter abalou muita gente. Para atenuar esta grande tragédia, tomei a liberdade de pegar emprestado um de seus personagens - aliás, um antepassado distante de um de seus personagens - e escrevi um micro-conto do tamanho do meu talento.
À época deste caso eu estava hospedado nas terras do Lord Willoughby, em Wiltshire, acompanhando as suas interessantíssimas exposições sobre a existência de um gigante que equilibra o disco da terra em sua cabeça. A certa altura da estadia, no meio da noite, alguém bateu na porta procurando por mim. Nessa época eu estava com medo de ser morto pelos franciscanos, os beneditinos e os cistercienses, porque eu havia roubado todos eles num jogo de bingo. Como eu não sabia quem era, fiz um negócio que eu sempre faço, que é falar com a voz mais fina de maneira a criar a ilusão no meu interlocutor de que eu sou, na verdade, uma moça. No fim das contas era o secretário do Arcebispo, que não tinha interesse em me matar. Larguei o meu bastão cheio de pregos e recebi o sujeito.
— Doktor Paglia, a Sua Eminência está precisando da sua ajuda. Ocorreu um assassinato em seu palacete e precisamos descobrir o culpado.
Essa é uma confusão comum sobre o meu trabalho. Todo mundo pensa que o detetive é o cara que soluciona mistérios e acha o culpado. Vou falar uma coisa pra vocês: em trinta anos de trabalho como detetive eu achei quatro, cinco culpados no máximo. O resto dos crimes provavelmente foi cometido por diabos ou fadas. Não, não acho o culpado. O trabalho do detetive na verdade é encontrar quem parece culpado, o que é muito pior do que ser o culpado, porque esses caras geralmente têm cicatrizes na cara e são carecas.
— Antes de sairmos, me diga uma coisa - falei, enrolando um cigarro de palha - tem algum frade franciscano, beneditino, cisterciense ou algum corcunda lá dentro? (Eu havia acabado de me lembrar de um corcunda que eu apontei e dei risadas no caminho para a casa do Lord Willoughby).
Depois de assegurado, montei no cavalo e fomos para o palácio do Arcebispo.
Vou contar um segredo que me ajudou muito na vida: quando você está na presença de alguém muito eminente, tem que pensar como ele, entrar no personagem. Ele tem que olhar para você e ver um par, um igual. Por isso, sempre que eu entro num palácio a primeira coisa que eu faço é dar um tapão na cabeça do primeiro serviçal que eu vejo, e se possível com cusparadas. Depois que eu fiz isso, o Arcebispo deu gostosas risadas e me recebeu com calorosos abraços (o meu segredo funcionou!, pensei). Fui levado até a cena do crime, num dos aposentos para os convidados. Um homem - um nobre qualquer - estava morto no chão, ao lado da cama, com algumas moscas saindo de sua boca. Examinei o defunto e disse, sem qualquer sombra de dúvida:
— Morreu do coração.
O Arcebispo e seus criados ficaram atônitos.
— Como assim? - Disse o santo homem - Tem um rasgo de faca aí no peito dele. E tem essa faca com sangue aqui do lado…
— Achei que era uma marca de nascença - rebati, debruçado sobre o cadáver, tentando roubar o seu relógio de ouro sem ninguém perceber - Mas foi ataque do coração do mesmo jeito. Alguém botou essa faca aí pra me despistar. Deve ter sido um demônio ou um careca.
Voltei à casa do Lord Willoughby rapidamente, porque os dedos do defunto em meus bolsos estavam começando a cheirar e eu tinha que tirar os seus anéis. Continuamos a ouvir suas exposições científicas, desta vez sobre um cachorro que usava chapéu. No outro dia, de manhã, recebi a notícia: o Arcebispo havia descoberto que o seu convidado de fato havia passado mal e morrera do coração. Depois, um de seus serviçais enfiou-lhe a faca para tentar incriminar o Arcebispo, por inveja. Ainda mais incrível: o serviçal era careca.
Lord Willoughby, um dos homens de ciência mais brilhantes da Ilha, não conteve a sua admiração e perguntou como eu sabia que o sujeito havia morrido do coração.
— Simples - respondi, enrolando meu palheiro -, ele era gordo. Gordo é cheio dos problema de coração.
Sempre muito bom ler seus textos ! obrigado.
Muito boa, hilária, brilhante. A minha opinião é a única que importa.